Já viajei muito mundo afora para eventos de tecnologia. Quando sobra algum tempo livre, procuro dar uma olhada na cidade onde estou, aspirar um pouco de sua vida e cultura, sentir que estou inserido no mundo, perceber que existem à nossa volta outros pontos de vista, outras formas de lidar com a existência. Elas podem estar nas pessoas e também nas obras que elas construíram, nos prédios em volta, nas praças, nas ruas, nos meios de transporte… E até no próprio clima, tão diverso e caprichoso em lugares por vezes tão próximos.
Sou do tempo em que o Fernando Sabino tinha uma coluna em “O Globo” e, como viajava muito, volta e meia relatava suas peripécias e impressões dos lugares onde se encontrava. As crônicas do escritor mineiro me faziam viajar com ele, assim como qualquer bom livro. Quando comecei a viajar mais amiúde, mercê de minha profissão, as câmeras fotográficas digitais ainda não estavam difundidas. As pessoas tinham tempo de parar, olhar e refletir sobre o que estavam observando.
Tenho um perfil um pouco diferente de meus colegas que escrevem sobre tecnologia. Alguns deles, quando têm uma folga das entrevistas e sessões comuns em nossa lida cotidiana, aproveitam para sair em direção aos bairros que abrigam lojas de informática, para obter o último modelo deste ou daquele gadget. Já eu prefiro os lugares históricos, gosto de mergulhar na cultura de um país, por mais exíguo que seja o intervalo. Ainda hoje me lembro de minha visita à catedral de Santo Estêvão, em Viena, Áustria, uma das construções em estilo gótico mais importantes da Europa. A igreja é sombria e sua nave é altíssima; tumbas de fundadores de dinastias de imperadores austríacos ladeiam o altar; e há um púlpito maravilhosamente esculpido, com animais como sapos, cobras e outros no corrimão das escadas, representando os maus pensamentos que o padre poderia ter antes de subir e fazer seu sermão. No alto, dois cães evitam que esses maus pensamentos tomem o púlpito, garantindo ao pároco seu devido estado de contemplação espiritual. A igreja começou a ser construída em 1137 e tem uma torre de 136 metros.
Cito tudo isso de memória; não tirei uma fotografia sequer do lugar. E minha viagem foi em 1995. Por que relembro tudo isso? Mesmo que ainda tenham tempo de parar e observar as coisas à sua volta, as pessoas preferem desperdiçar esse tempo fotografando freneticamente tudo o que as cerca. A possibilidade de fazer dezenas, quiçá centenas de fotos, num curto período, parece ter enlouquecido as pessoas, ávidas por registrar lembranças com suas máquinas de última geração.
Mas será que registram mesmo? As câmeras, com certeza, registram; já os cérebros…bem, tenho minhas dúvidas. Você já conheceu alguém que acaba de ler um livro e, questionado sobre seu enredo, não sabe responder bem como é a história? Pois bem, me parece que a ânsia fotográfica dos viajantes está lhes roubando o prazer de deixar o ambiente adentrar seus pensamentos, de refletir sobre ele, de fazer comparações. É desse impacto estritamente pessoal e intransferível que uma lembrança, uma legítima memória, é feita. Não do clique-clique incessante que enquadra uma realidade passível de ser muito mais ampla. Na verdade, a fotografia cria outra realidade no momento em que tocamos o disparador. Não é a mesma coisa estar em um lugar e estar em uma foto do lugar; são duas situações bem distintas. Além do mais, o enquadramento recorta da imagem ângulos que nossos pensamentos e emoções, se deixados soltos, poderiam examinar melhor.
Walter Benjamin, filósofo alemão que refletiu, nos anos 30, sobre a indústria cultural, dizia que a fotografia jamais teria a aura de uma pintura, que eterniza um único momento e é única, daí a idéia de autenticidade que permeia toda obra de arte. Da mesma forma, a reprodução fotográfica de um momento único em uma viagem não é a mesma coisa que este momento único.
Será esta a razão por que nossa memória parece falhar mais hoje em dia do que antigamente? Tanta informação disponível parece livrar-nos da necessidade de guardar ou decorar alguma coisa, ainda que gostemos muito dela. Da mesma forma, tantas imagens parecem livrar-nos da necessidade de experimentar uma recordação genuína, vivenciada diretamente por nossos olhos, por nosso corpo, e não com o visor da câmera como intermediário. Ele jamais pode tomar o lugar de nossas retinas.
Vejam bem, não estou criticando os amantes da fotografia, até porque trabalho com alguns muito dedicados. Mas quem realmente ama a fotografia também ama o real que o cerca — contempla-o e percebe-o muito bem antes de tentar enquadrá-lo. Não é o caso do viajante incidental, que quer fotografar o máximo e contemplar o mínimo. Acredito que é preciso rever esse tipo de relação dependente da tecnologia — e talvez isso possa valer para outros exemplos, como o do telefone celular, que, embora necessário, é muito usado em ligações banais e sem qualquer propósito.
A beleza da tecnologia reside no fato de ser uma extensão de nós. Não se pode perder isso de vista. Sem dúvida a vida digital pode ser maravilhosa. Eu posso testemunhar. Tenho amigas que só conheço por e-mail, e trocamos cartas em que muito de nossas vidas é desfiado. Mas sou igualmente sortudo a ponto de ter “puxado” outras para a vida real — e, embora nos falemos por e-mail também, nada substitui um almoço e a possibilidade de tocar suas mãos para expressar a grande alegria de conviver com alguém muito estimado. .
André Machado
*Publicado originalmente no site FórumPCs.
**Jornalista, poeta e músico. Repórter da revista Digital de O Globo
Español: Reflexiones sobre La fotografía
Ya he viajado mucho por el mundo por eventos de tecnología. Cuando sobra algo de tiempo libre, procuro darle una mirada a la ciudad donde estoy, aspirar un poco de su vida y cultura, sentir que estoy insertado en el mundo, percibir que existen a nuestro alrededor otros puntos de vista, otras formas de lidiar con la existencia. Pueden estar en las personas y también en las obras que ellas han construido, en los edificios alrededor, en las plazas, las calles, los medios de transporte…E incluso en el propio clima, tan diverso y caprichoso en lugares a veces tan cercanos.
Soy del tiempo en que Fernando Sabino tenía una columna en “O Globo” y como viajaba mucho, una vez que otra relataba sus peripecias e impresiones de los lugares donde se encontraba. Las crónicas del escritor minero me hacían viajar con él, como cualquier buen libro. Cuando comencé a viajar más a menudo, a merced de mi profesión, las cámaras fotográficas digitales aún no estaban difundidas. Las personas tenían tiempo de detenerse, mirar y reflexionar sobre lo que observaban.
Tengo un perfil un poco diferente al de mis colegas que escriben sobre tecnología. Algunos de ellos, cuando tienen un descanso de las entrevistas y sesiones comunes en nuestro día a día, aprovechan para salir en dirección a los barrios que abrigan tiendas de informática, para obtener el último modelo de este o aquel gadget. Yo prefiero los lugares históricos, me gusta sumergirme en la cultura de un país, por más breve que sea el intervalo. Aún hoy recuerdo mi visita a la catedral de San Esteban en Viena, Austria, una de las construcciones de estilo gótico más importantes de Europa. La iglesia es sombría y su nave altísima; tumbas de fundadores de dinastías de emperadores austríacos rodean el altar; hay un púlpito maravillosamente esculpido, con animales como sapos, serpientes y otros en el pasamanos, que representan los pensamientos que el padre podría tener antes de subir y hacer su sermón. En lo alto, dos canes evitan que sus malos pensamientos tomen el púlpito, garantizándole al párroco su debido estado de contemplación espiritual. La iglesia comenzó a construirse en 1137 y tiene una torre de 136 metros.
Cito todo esto de memoria; no saqué ni una fotografía del lugar. Y mi viaje fue en 1995. ¿Por qué me acuerdo de todo esto? Aunque todavía tengan tiempo de detenerse y mirar a su alrededor, las personas prefieren desperdiciar ese tiempo fotografiando frenéticamente todo lo que los rodea. La posibilidad de tomar decenas, quizás centenas de fotos, en un corto período parece haber enloquecido a la gente, ávidos por registrar recuerdos con sus cámaras de última generación. ¿Pero lo registrarán realmente? Las cámaras sin duda lo registran, los cerebros…bien, tengo mis dudas. Ya conocen a alguien que acaba de leer un libro y, al cuestionar su trama, no sabe responder bien cómo es la historia? Pues bien, me parece que el ansia fotográfica de los viajeros les está robando el placer de dejar que el ambiente entre en sus pensamientos, reflexionar, comparar. Y es de este impacto estrictamente personal e intransferible que un recuerdo, una legítima memoria, se forma. No del click-click incesante que encuadra una realidad pasible de ser mucho más amplia. En realidad, la fotografía crea otra realidad en el momento en que tocamos el disparador. No es lo mismo estar en un lugar que estar en una foto del lugar, son dos situaciones muy distintas. Además, el encuadre le corta a la imagen ángulos que nuestros pensamientos y emociones, si los soltáramos, podrían examinar mucho mejor.
Walter Benjamin, filósofo alemán que en los años 30 reflexionó acerca de la industria cultural, decía que la fotografía jamás tendría el aura de la pintura, que hace eterno un único momento y es única, la reproducción fotográfica de un momento único en un viaje no es lo mismo que este momento único.
¿Será este el motivo por el cual nuestra memoria parece fallar más hoy en día que antiguamente? Tanta información disponible parece librarnos de la necesidad de grabar o memorizar algo, aunque nos guste mucho. De esta manera, tantas imágenes parecen librarnos de la necesidad de probar un recuerdo genuino, vivenciado directamente por nuestros ojos, por nuestro cuerpo y no con el visor de la cámara como intermediario. Jamás podría tomar el lugar de nuestras retinas.
Vean bien, no estoy criticando a los amantes de la fotografía, incluso porque trabajo con algunos de ellos muy dedicados. Pero quien realmente ama la fotografía, también ama lo real que lo rodea – lo contempla y lo percibe muy bien antes de intentar encuadrarlo. No es el caso del viajero incidental, que quiere fotografiar lo máximo y contemplar lo mínimo. Creo que es necesario rever este tipo de relación dependiente de la tecnología – y tal vez pueda valer para otros ejemplos como el del teléfono móvil que, aunque sea necesario, se lo usa mucho para llamadas banales y sin sentido.
La belleza de la tecnología reside en el hecho de ser una extensión nuestra. No se puede perder eso de vista. Sin duda la vida digital puede ser maravillosa. Yo puedo atestiguarlo. Tengo amigas que sólo conozco por mail, y nos cambiamos cartas en las que desafiamos mucho de nuestras vidas. Pero soy igual de suertudo por haber “arrastrado” a otras hacia la vida real – y aunque nos hablemos por mail también, nada reemplaza un almuerzo y la posibilidad de tocarles las manos para expresar la grande alegría de convivir con alguien muy estimado.
André Machado
*Publicado originalmente en el sitio FórumPCs.
**Periodista, poeta y músico. Periodista de la revista Digital de O Globo